Análise: Após aproximação com EUA, Rússia vê novo inimigo n° 1: Reino Unido
Dois diplomatas britânicos expulsos em uma briga de espionagem.
Dois diplomatas britânicos expulsos em uma briga de espionagem. Uma declaração contundente do serviço de inteligência estrangeira da Rússia chamando o Reino Unido de “belicista”. E uma ameaça de um dos principais aliados de Vladimir Putin de confiscar ativos ingleses dentro da Rússia.
Enquanto os Estados Unidos sob Donald Trump buscam restabelecer laços com Moscou e intermediar a paz entre a Rússia e a Ucrânia, o Reino Unido ecebeu o status de inimiga pública número um da Rússia – um manto que o país manteve intermitentemente nos últimos dois séculos.
“Londres hoje, como na véspera das duas Guerras Mundiais do século passado, está agindo como a principal ‘belicista’ global”, disse o serviço de inteligência estrangeira da Rússia em uma declaração pública incomumente carregada na segunda-feira (10). O serviço também acusou Londres de tentar atrapalhar os esforços de Trump para intermediar a paz na Ucrânia.
“Chegou a hora de expô-los e enviar uma mensagem clara: vocês não terão sucesso”, disse a agência, conhecida como SVR.
Além das críticas ao Reino Unido, Moscou também subiu o tom contra a União Europeia e o presidente da França, Emmanuel Macron, cuja conversa sobre o arsenal nuclear francês como um contraponto a uma ameaça russa percebida irritou o Kremlin.
A invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 se tornou o maior e mais mortal conflito da Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Deixou centenas de milhares de mortos e feridos, deslocou milhões e desencadeou o confronto mais acirrado entre Moscou e o Ocidente em décadas.
Durante a maior parte da guerra, a Rússia criticou Washington por seu papel no fornecimento de ajuda a Kiev. Com Trump no cargo, isso mudou.
Três autoridades russas, que falaram sob condição de anonimato, disseram que os britânicos agora eram considerados o principal inimigo de Moscou, com uma delas dizendo que Londres estava “fomentando o caos e a guerra” na Ucrânia.
Outro descreveu o Reino Unido como a força motriz no Ocidente quando se tratava de galvanizar a oposição à Rússia.
A conversa do primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, sobre colocar tropas no solo e aviões no ar na Ucrânia como parte de uma potencial força de manutenção da paz também irritou políticos russos – assim como sua reunião da “coalizão dos dispostos” e seu lobby pessoal e telefônico com Trump para apoiar a Ucrânia.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, classificou Starmer como alimentador de tensões no exato momento em que Trump tentava acalmá-las.
Diplomatas britânicos na Rússia dizem que sabem o que estão enfrentando. Expulsões retaliatórias já reduziram a equipe da embaixada britânica em pelo menos 10 diplomatas desde o início da guerra.
O serviço de segurança FSB da Rússia acusou, na segunda-feira, um diplomata britânico e a esposa de outro diplomata de espionagem e os expulsou – alegações que Londres chamou de “infundadas”.
O Reino Unido convocou o embaixador da Rússia em Londres na quarta-feira (12) e expulsou um diplomata russo e uma esposa diplomática em retaliação.
“Está claro que o Estado russo está buscando ativamente levar a Embaixada Britânica em Moscou ao fechamento”, disse o Ministério das Relações Exteriores inglês em um comunicado na quarta.
Questionado sobre a inimizade russa em relação a Londres, um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores Britânico disse que não se envolveria com “todas as alegações infundadas” feitas por Moscou.
“Eles começaram esta guerra e, enquanto estão ocupados alimentando a divisão, o Reino Unido e nossos aliados, incluindo os EUA, estão focados em garantir uma paz justa e duradoura na Ucrânia. Qualquer coisa que sugira o contrário é claramente um absurdo”, disse o porta-voz.
“Ação hostil”
A Rússia, de acordo com o chefe do Serviço Secreto de Inteligência MI6 da Grã-Bretanha, usou sabotagem “incrivelmente imprudente” em solo britânico e europeu.
Um tribunal de Londres considerou neste mês três búlgaros culpados de fazerem parte de uma unidade de espionagem russa. Em outubro, um britânico admitiu a um tribunal de Londres que havia realizado um ataque incendiário em um armazém de propriedade ucraniana no leste de Londres em nome da Rússia.
Um inquérito britânico culpou a Rússia pelo envenenamento, em 2006, do crítico do Kremlin Alexander Litvinenko em Londres com uma substância radioativa. Londres também acusou Moscou do envenenamento de Salisbury, em 2018, que usou o agente nervoso Novichok. Moscou rejeitou todas as acusações.
Alguns políticos russos sugeriram, sem fornecer evidências, que o Reino Unido ajudou a Ucrânia a realizar operações de sabotagem em alvos russos, como na ponte que liga a Crimeia à Rússia continental, na qual duas pessoas foram mortas em 2023.
Uma das três autoridades russas disse que Starmer, como o ex-primeiro-ministro Boris Johnson antes dele, estava usando a guerra na Ucrânia para distrair a população dos problemas domésticos. Londres diz que quer garantir que a Ucrânia não seja forçada a capitular em termos irracionais.
“A mulher inglesa cria problemas”
Comentaristas nacionalistas da TV estatal russa começaram a dizer que Londres vem tentando minar Moscou há séculos.
Apesar da popularidade de Londres como um destino de investimento russo após o colapso da União Soviética em 1991, a desconfiança no Reino Unido tem suas raízes ainda na Guerra da Crimeia de 1853 a 1856, quando fazia parte de uma aliança que derrotou o Império Russo.
As supostas transgressões mais recentes da Inglaterra fizeram com que os políticos russos recorressem a uma frase do século XIX usada para descrever a política externa hostil dos britânicos em relação à Rússia, ainda sob a rainha Vitória: “A mulher inglesa cria problemas”, um ditado que significa a suposta malevolência sistemática da Inglaterra em relação a Moscou.
O novo e azedo clima antibritânico, que foi acompanhado por um abrandamento rápido e acentuado da retórica anti-EUA na mídia estatal, pode deixar Londres mais exposta.
À medida que a Rússia entra em um quarto ano de guerra com sua economia superaquecida, há uma sensação em Moscou de que a nova abordagem de Trump oferece uma chance de paz em termos favoráveis .
Alguns legisladores disseram que empresas de nações “hostis” – como o Reino Unido – não devem ser autorizadas a voltar, mesmo que as sanções ocidentais sejam aliviadas após um eventual acordo de paz com a Ucrânia, ou que tenham uma jornada muito mais difícil se forem.
Vyacheslav Volodin, um dos principais aliados de Putin, falou esta semana sobre a necessidade de recuperar dinheiro do Reino Unido, uma referência aos juros acumulados sobre ativos russos congelados no país, no valor de cerca de US$ 26 bilhões, que Londres tem entregue à Ucrânia.
O comércio britânico-russo encolheu de mais de 16 bilhões de libras em 2021 para pouco mais de 2 bilhões de libras em 2023, de acordo com dados do governo do Reino Unido, com a petrolífera BP sofrendo um golpe de mais de US$ 20 bilhões para sair da Rússia em 2022.
Outras empresas britânicas, como a gigante farmacêutica sueca-britânica AstraZeneca e a GlaxoSmithKline, continuam a fazer negócios lá.
Locomotiva britânica
Alguns na Inglaterra podem se surpreender com a importância global atribuída aos serviços de inteligência e forças especiais de Londres por Moscou. Mas uma das três autoridades russas disse que Londres mostrou que era capaz de liderar pelo exemplo na Ucrânia.
“Eles são a locomotiva e puxam os outros junto com eles”, disse a autoridade.
O Reino Unido, que oferece treinamento e financiamento aos militares ucranianos, foi o primeiro país a prometer tanques de batalha principais de fabricação ocidental para a Ucrânia e o primeiro a entregar mísseis de cruzeiro de longo alcance em um momento em que outros países estavam hesitantes.
Isso irritou profundamente a Rússia.
“Se hoje a Grã-Bretanha está atingindo nosso território com seus mísseis da Ucrânia Considero isso um bom motivo para ela deixar de existir”, disse Andrei Gurulyov, um legislador pró-Putin e ex-comandante militar, à TV estatal em janeiro.
A tentativa da Rússia de retratar o Reino Unido como belicista ecoa a acusação de Putin de que o ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson persuadiu o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky a se afastar de um possível acordo de paz em 2022, uma afirmação que Johnson e Zelensky rejeitam.
E embora pareça enfraquecer a acusação de que o Reino Unido representa uma ameaça a Moscou, os políticos e comentaristas russos têm estado ansiosos para apontar o estado encolhido do Exército britânico, que atualmente tem menos de 75 mil soldados em tempo integral. A Rússia tem cerca de 1,1 milhão de militares ativos.
O âncora da TV estatal Yevgeny Kiselyov usou seu programa principal este mês para brincar que todo o Exército britânico caberia no estádio de futebol de Wembley, em Londres.