Enquanto grande parte do mundo ainda volta os seus olhos para o Leste Europeu com a possibilidade do desfecho da guerra entre Rússia e Ucrânia mediado pelos Estados Unidos, ou até mesmo analisa as ramificações da guerra no Oriente Médio protagonizada por Israel e Hamas, no continente africano um conflito entre vizinhos ganha corpo. O pequeno país localizado na região dos grandes lagos, Ruanda, tem apoiado militarmente um grupo rebelde na República Democrática do Congo, um vizinho muito mais populoso, mais rico em recursos e muito maior em área. O grupo rebelde M23, com a ajuda do exército de Ruanda, conseguiu o controle de diversas cidades nas províncias de Kivu do Norte e Kivu do Sul, principalmente a cidade fronteiriça de Goma, que agora dá acesso privilegiado a Ruanda a uma rota de escoamento de minerais que são extraídos no rico solo congolês.
As raízes desta ajuda militar remontam ao trágico período de guerra civil em Ruanda, que culminou no genocídio de quase 1 milhão de Tutsis, mas a posição atual do presidente Paul Kagame indica outras pretensões. Ruanda já é um centro financeiro dos mais importantes da África e desprovida de vastos recursos e com uma densidade populacional muito alta. O país busca diversificar sua economia e possivelmente ampliar seu território. O governo de Kinshasa segue em uma onda de impopularidade e desconfiança após décadas de pobreza, promessas não cumpridas e corrupção. Neste cenário desolador, a nação de mais de 100 milhões de pessoas com enormes problemas socioeconômicos vê nos rebeldes do M23 algum tipo de esperança. A facção rebelde oferece uma resposta às demandas da população que os têm apoiado em diversas localidades fronteiriças, dificultando a posição do exército nacional congolês.
As questões territoriais são também delicadas, já que as fronteiras pré-coloniais, na visão de Ruanda, estenderiam os limites históricos do antigo reino para além de seus confins atuais, chegando até Burundi, Uganda e o próprio Congo. Durante a década de 1960, no contexto de descolonização da África, apesar de fortes discordâncias políticas, as lideranças continentais se comprometeram a não violar as fronteiras de seus vizinhos, mesmo reconhecendo as arbitrariedades do traçado herdado pelos europeus. A decisão foi manter as fronteiras coloniais para as novas nações como uma maneira de evitar intermináveis conflitos étnicos que trariam um banho de sangue constante ao continente. Hoje tudo indica que o futuro desses tratados depende do que acontecerá nesta região histórica e tão rica em recursos naturais, assim como as decisões em Kigali sobre até que ponto continuará essa empreitada militar.
Infelizmente, durante as últimas semanas, muitos relatos afirmam que milhares de pessoas, civis e militares, morreram em decorrência deste conflito e que a possibilidade de intensificação de batalhas pode ainda ser mais prejudicial para a população civil, que já sofreu uma série de abusos pelos rebeldes e pelos exércitos nacionais. Ataques a população civil, abusos sexuais e execuções arbitrárias têm se tornado rotina em regiões tomadas pelos rebeldes ou perdidas no fogo cruzado entre os beligerantes. O futuro de todo o continente depende daquilo que ocorrerá na área dos grandes lagos africanos nas próximas semanas, para sabermos se mais uma vez a violência e as arbitrariedades da guerra determinarão o destino da África.
JOVEM PAN