Escaldado cuiabano cura ressaca de foliões e boêmios

Houve um tempo em que grupos de jovens cuiabanos, para curar a ressaca nos dias de carnaval, saiam dos bailes nos clubes e iam direto tomar banho de cachoeira na Salgadeira.

Escaldado cuiabano cura ressaca de foliões e boêmios

Houve um tempo em que grupos de jovens cuiabanos, para curar a ressaca nos dias de carnaval, saiam dos bailes nos clubes e iam direto tomar banho de cachoeira na Salgadeira. Adultos, o hábito dessa turma mudou. Depois da noitada, o caminho era o Restaurante Choppão para consumir o tradicional escaldado cuiabano, alimento certeiro para a ressaca das noites de folia.

Muitos ainda cultivam esse costume, alguns na faixa 60+ e 70+. A ideia é a mesma de antigamente – recuperar energia, ainda que, agora, tomar escaldado em Cuiabá esteja associado também ao frio. Porém, desde sua origem, esse caldo da cozinha regional é servido e procurado o ano todo por nativos boêmios e visitantes da capital, em especial nas noites e madrugadas, para curar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Além de suculento, o escaldado cuiabano é afrodisíaco, diz a lenda. Escaldar é uma técnica culinária que consiste em cozinhar alimentos rapidamente com vapor quente ou água fervente. No caso do escaldado cuiabano, o seu preparo incorporou, da influência indígena, a farinha de mandioca e o modo de fazer como um pirão pouco engrossado.

O escaldado cuiabano pode ser com carne moída ou frango desfiado, sendo esse último o mais popular. Depois de refogada a proteína escolhida junto com os temperos, acrescente água para cozimento e espere ferver. Ao levantar a fervura, a farinha de mandioca deve ser adicionada bem devagar e sem parar de mexer o caldo, para não empelotar, até ficar quase grosso.

Quando levantar a fervura de novo, acrescentar os ovos inteiros, sem mexer. Aguarde alguns minutinhos, em fogo baixo, para que os ovos endureçam. Desligue o fogo e, então, está pronto o escaldado. Minha avó, minha mãe e minha sogra, no tempo delas, não usavam massa de tomate no preparo do escaldado. Minha irmã e eu, no nosso tempo, também não. No máximo picamos um tomate sem casca ao refogar a carne moída ou o frango desfiado.

O jornalista Romeu Roberto escreveu, em crônica no Diário de Cuiabá (2004), que, no passado, o escaldado era preparado nas residências também com o objetivo de rebater o cansaço de membros da família. Já nos bares e restaurantes, Romeu Roberto contou que o primeiro deles, na capital, a introduzir o escaldado em seu cardápio foi o Bar e Restaurante do Altamiro, no beco do Candeeiro com a Voluntários da Pátria.

Próximo à praça da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, marco e referência da fundação de Cuiabá, o Bar do Altamiro constituiu-se em ponto dos boêmios das décadas de 1950 e 1960 que passavam as noites com as mulheres do Bar Colorido, que oferecia bailes tradicionais durante a semana e promovia bailes carnavalescos quando chegava o mês de fevereiro.

O escritor José Augusto Tenuta, em sua obra Cuiabá da tchapa e da cruz (2015), confirma "a existência da versão dando conta que a gênese do escaldado se deu no Beco do Candeeiro, no Bar do Altamiro". Porém, ele deixa em aberto essa questão da origem, pois histórias contadas sobre o famoso prato dão conta que "foi criado comercialmente no cabaré da Lurdinha, no bairro do Baú".

Teria surgido por causa de pedidos de "abastados frequentadores da casa noturna", desejosos por algo mais consistente, ao final das noitadas, para combater a ressaca. Zeca Tenuta conta que Lurdinha, então, repassou a reivindicação a Maria Preta, sua cozinheira, que transformou o escaldado num prato mais encorpado e condimentado, acrescentando alguns novos ingredientes, o que agradou a clientela.

Nos anos 1960, o Bar do Altamiro e o Bar Colorido fecharam as portas, mas o escaldado cuiabano permaneceu nos cardápios de outros estabelecimentos, como o Bar e Restaurante Soraia, o Bar de João Pequizeiro e o Bar e Armazém do Araguarí, destaca Romeu Roberto. Já Zeca Tenuta lembra que a mesma receita do escaldado de Maria Preta foi identificada no restaurante do casal Noêmio e Wanda, no bairro do Baú.

Nas décadas de 1970 e 1980, no antigo Ribeirão da Ponte, foi o Restaurante Barra Limpa que fez sucesso com o escaldado cuiabano. A cozinha do restaurante era pilotada por Madalena Mendes Luz, a Madá. Alguns contadores de história dizem que a receita de Madá foi a que o Restaurante Choppão incorporou no preparo do prato, transformando-o, até os dias de hoje, no carro-chefe do cardápio do restaurante.

Passei por lá numa noite deste carnaval que acabou de acabar. Lembrei, então, de pedir a opinião dos amigos apreciadores do escaldado:

"Tomo escaldado para fechar a noite. Gosto muito". (Luciana Leite)

"Tomo para prolongar a folia. Sou inimiga do fim das noites de carnaval". (Iviusch Nascimento)

"Antes de voltar pra casa de madrugada, passava no Choppão e tomava umas pratadas de escaldado. Depois dormia igual recém-nascido e, ao acordar, era zero ressaca ou qualquer vestígio da cachaça da noite anterior". (Anderson Pinho)

"O escaldado, além de delicioso, é revigorante. O remédio certeiro para um amanhecer feliz". (Glaucia Barros)

Impossível excluir o escaldado depois de uma noite de carnaval, gosto muito e me faz bem". (Marcos Luiz)

Sônia Zaramella é jornalista e professora aposentada do curso de Jornalismo da UFMT.

* A opinião do articulista não reflete necessariamente a opinião do PNB Online