Ainda Estou Aqui: veja o filme, leia o livro

O livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui (Editora Alfaguara, Rio de Janeiro, 2015) foi adaptado pelo diretor Walter Salles para o filme de mesmo título.

Ainda Estou Aqui: veja o filme, leia o livro

O livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui (Editora Alfaguara, Rio de Janeiro, 2015) foi adaptado pelo diretor Walter Salles para o filme de mesmo título. O resultado é um sucesso de público e, com todo mérito, está colocado entre os candidatos ao Oscar 2025, nas categorias de Melhor Filme; Melhor Filme Estrangeiro e de Melhor Atriz para a nossa Fernanda Torres.

As indicações para os prêmios da indústria cinematográfica norte-americana por si só já indicam a qualidade da obra, somando-se aos outros importantes prêmios conquistados. O maior prêmio, entretanto, é doméstico: o sucesso de bilheteria no Brasil. Um filme que não é uma peça de propaganda política e consegue tirar do Buraco da Memória, como pano de fundo, um período nojento da vida nacional: a ditadura militar que derrubou a democracia e impôs tempos sombrios.

Do livro de Marcelo Rubens Paiva e do filme de Walter Salles destacamos dois pontos de força e beleza estética:

– A perda da memória retratada na doença da protagonista, a mãe de Marcelo, Eunice Paiva, a esposa de Rubens Paiva, vivida no filme por Fernanda Torres & Fernanda Montenegro. A sensibilidade para falar de Alzheimer: "É um transtorno. Não tem data exata para se manifestar. Nem motivos visíveis. Detecta-se através da ressonância magnética do cérebro. Não tem cura. Pode-se viver anos com a doença", relata Marcelo no livro.

Com humor de diferenças culturais que revela uma crítica pertinente: a diferença entre o argentino e o brasileiro é que o argentino não consegue esquecer o seu passado político e o brasileiro não consegue lembrar. Ou seja, para a gente, essa incapacidade de lembrar até do passado recente é sempre um risco de repetir erros e tragédias. O Brasil vive um apagamento da memória dos tempos da ditadura militar. Perde-se a ideia de que a democracia é o modo de vida que permite viver uma vida plena, sem medos, sem subserviência, livre do mito da superioridade moral dos militares em relação aos civis. Ditadura, de esquerda ou direita, civil ou militar, é a forma de rebaixamento da condição da vida livre em sociedade. De onde podemos tirar duas consequências da perda desta memória: a) a democracia não é uma conquista para sempre. Se não for plenamente exercida, vivida para sempre no cotidiano, sem ser deixada apenas por conta das instituições, ela morre nas mãos daqueles que aparecem como salvadores da pátria, com soluções simplistas e alimentando ódios e divisões b) só aqueles que se locupletam com a ditadura defendem uma sociedade dominada, submetida à força das baionetas.

"A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para a casa" (Marcelo Rubens Paiva)

– O outro ponto de força e beleza no livro e no filme é o retrato direto ou como pano de fundo do absurdo que a ditadura militar vendia. A verdade única, a repulsa ao outro, a destruição da vida em democracia. Defender a liberdade não é matar a liberdade, não é torturar a liberdade, é garantir o espaço e a informação para que todos possam participar da vida em sociedade. Parece utopia, mas não é. Utopia é sonho sem ação. É quando a gente abre mão de lutar pelo ideal de vida em democracia, aceitando passivamente uma ordem imoral sem reação. Não existe regime democrático quando os fins justificam os meios violentos e totalitários. A reação de Eunice Paiva, mostrada no livro e no filme, é de uma mulher na defesa intransigente e corajosa dos direitos de um estado democrático.

Usar a ameaça à democracia como argumento para implantar uma ditadura é, como diz Marcelo Rubens Paiva, uma aberração jurídica, incongruência em que todo o regime autoritário se baseia: para defender a liberdade, precisamos acabar com ela, essa é a lógica torta dos golpistas defensores de ditaduras.

Marcelo Rubens Paiva – Arquivo Pessoal

A Revolução Brasileira de 31 de março de 1964, como os militares e os civis servis chamavam o golpe, visava dar ao país um regime que "assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições do nosso povo, na luta contra a corrupção", escreve Marcelo Rubens Paiva, definindo com uma frase criativa e ferina o regime instalado pelos golpistas no Brasil naquele período: "Ditadura de Merda".

Os antigos ideais da ditadura militar brasileira não morreram. Estão bem vivos na ideologia da extrema direita bolsonarista: "liberdade" para odiar o outro, para destruir os inimigos, para defender pautas moralistas excludentes dos direitos das minorias, e outras aberrações do gênero. Para não esquecer, para quem realmente defende a democracia, é preciso lembrar sempre o que disse o líder da extrema direita brasileira, o ex-presidente Jair Bolsonaro, na sua única crítica à ditadura militar.

"A ditadura matou pouco, tinha que matar pelo menos mais 30 mil. Vai morrer inocente? Vai! Mas faz parte da guerra" (Jair Bolsonaro, o "Mito" que se vende como alma cristã, mas que defende ideias diabólicas)

*Pedro Pinto de Oliveira é jornalista do PNB Online e professor da UFMT. Mestre em Ciências da Comunicação pela USP e doutor em Comunicação pela UFMG.