Infância sem filtro
Certa vez uma aluna me contou: quando pequena, sua mãe dizia que se ela comesse todo o prato de almoço, seus olhos castanhos ficariam azuis como os das bonecas de que ela gostava de brincar.
Certa vez uma aluna me contou: quando pequena, sua mãe dizia que se ela comesse todo o prato de almoço, seus olhos castanhos ficariam azuis como os das bonecas de que ela gostava de brincar. A adolescente, negra e de olhos castanhos, perdeu um bom tempo diante do espelho esperando a mágica que nunca aconteceu.
A pressão sobre as meninas é tão antiga quanto o mundo. Quem foi adolescente nos anos 90 como eu certamente se comparou às modelos de revista, ouviu inúmeras frases machistas e teve seu corpo avaliado e julgado como mercadoria, sem falar naquelas que conviviam com agressões e abusos. A pressão não é de hoje; contudo, vejo como mãe de menina e professora de adolescentes que as redes sociais potencializaram essa violência – que, sim, ocorre com os meninos, mas de forma bem menos frequente -, encurtando a infância.
Por um lado, evoluímos bastante na representatividade e na valorização da beleza de todas as mulheres – aumentou a possibilidade de a menina negra hoje brincar com bonecas parecidas com ela, ver mulheres negras como protagonistas e de achar-se linda. Por outro lado, a preocupação com a própria imagem cresceu, gerando uma autocobrança em nível jamais percebido entre crianças.
Meninas são cada vez mais empurradas a deixar a infância: brincam menos e se maquiam mais. Não podemos achar normal meninas de 11 anos com maquiagem pesada na escola ou crianças preocupadas com o número de seguidores nas redes. Meninas lindas sofrem com a diferença entre seus rostos reais e aqueles dos filtros.
A preocupação excessiva com a imagem afasta da essência da infância, um tempo sobretudo de liberdade. Faz com que brincar e conversar seja menos importante do que tirar selfies, ter curtidas e buscar um padrão de beleza inatingível e irreal. A ideia de um corpo e um estilo de vida perfeitos é disseminada como banana nessa feira frenética das redes sociais, e as crianças, por sua vulnerabilidade psíquica, pagam caro por isso.
Vejo todos os dias na escola crianças que se mutilam, têm transtornos de ansiedade e buscam soluções no mesmo mundo das aparências que as fisgou. Em 2021, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), o Brasil se tornou campeão de plásticas em jovens entre 13 e 18 anos. As mais procuradas são implantes de silicone, lipoaspiração e rinoplastia.
As redes estimulam os transtornos alimentares, que vêm se agravando nas últimas décadas e acontecendo com meninas cada vez mais novas. Anorexia e bulimia, antes mais frequentes na adolescência, são agora comuns na faixa de oito a dez anos. A indústria da beleza prega que, com uma mudança no corpo, traumas e medos também se transformariam. Cremes não vendem mais uma pele saudável, mas um sérum que mudará sua relação com o mundo.
Nossa tarefa é gigante. Acolher, escutar e respeitar são exercícios diários que temos que fazer com nossas meninas. Como disse Manoel de Barros, "os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia". Proteger a infância e toda a sua poesia é remar contra a maré, mas isso não precisa ser uma luta solitária, se estivermos juntas.
Luiza Fariello é professora da rede pública do Distrito Federal. Mãe e escritora, é autora de "Essa palavra eu não falo" – semifinalista do Prêmio Oceanos -, e de "Hoje, Deserto", ambos publicados pela Editora Patuá
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